
O Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento da
Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7265, que discute a validade da Lei nº 14.454/2022 — norma que alterou a Lei dos Planos de Saúde (Lei nº 9.656/98) para reconhecer que o rol de procedimentos e eventos em saúde da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) possui natureza exemplificativa, e não taxativa.
A controvérsia é de profunda relevância para o ordenamento jurídico brasileiro e para a vida de milhões de usuários de planos de saúde. A lei em questão positivou critérios técnicos já utilizados pelo Judiciário e que, até então, eram aplicados de forma jurisprudencial.
Ao permitir a cobertura de procedimentos não listados, desde que observadas exigências rigorosas (eficácia científica comprovada, recomendação de órgãos técnicos nacionais ou internacionais, ausência de alternativa eficaz), a norma não subverte a lógica do sistema suplementar, mas sim o alinha com os princípios constitucionais da saúde, da dignidade humana e da função social do contrato.
O direito à saúde como direito social
O artigo 6º da Constituição Federal reconhece a saúde como direito social. O artigo 196 dispõe que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”, cabendo à ordem jurídica garantir políticas que visem à sua promoção. Embora os planos de saúde integrem a iniciativa privada, sua função é complementar ao SUS (art. 199, §1º), razão pela qual não podem se furtar aos deveres impostos pelo ordenamento constitucional no tocante à efetividade da assistência à saúde.
Mais que isso, o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) constitui fundamento da República, devendo orientar todas as relações jurídicas — inclusive as de beneficiários em planos de saúde.
O contrato de plano de saúde não é um contrato qualquer
Sob a ótica do Direito Contratual, é imprescindível lembrar que a relação estabelecida entre beneficiário e operadora é marcada pela hipossuficiência técnica, econômica e informacional do usuário, e, portanto, regida não apenas pelo Código Civil, mas também pelo Código de Defesa do Consumidor, nos termos da Súmula 608 STJ.
A cláusula que nega cobertura a um procedimento eficaz e indispensável à preservação da vida, com base exclusivamente na ausência de previsão no rol da ANS, afronta os princípios da função social do contrato (art. 421, CC), da boa-fé objetiva (art. 422, CC) e da proteção à parte vulnerável (art. 4º, I, CDC).
Trata-se de verdadeira cláusula abusiva, pois limita direitos essenciais do contratante e compromete o próprio objeto contratual, que é o acesso a cuidados médicos eficazes e adequados ao quadro clínico do paciente.
A tentativa das operadoras de transferirem o risco da atividade aos beneficiários: afronta à função social do contrato
Um dos aspectos mais preocupantes da atual tentativa de revogação da Lei nº 14.454/2022 é a intenção velada das operadoras de planos de saúde de transferirem ao próprio beneficiário o risco inerente à atividade que exercem. Em vez de assumirem a responsabilidade pela gestão dos custos e cobertura assistencial — como exige a natureza do contrato e a legislação vigente —, buscam restringir ainda mais o acesso ao tratamento, mesmo quando este é prescrito por profissional habilitado e respaldado por evidência científica.
Os contratos de planos de saúde possuem natureza de contrato de adesão. O beneficiário, diante da urgência e da essencialidade do serviço, não possui poder de barganha: ele não escolhe cláusulas, não negocia termos. Apenas adere a um conjunto pré-formatado de condições impostas unilateralmente pela operadora. Nessa relação, o beneficiário é parte vulnerável por definição, como reconhecem tanto o Código Civil quanto o Código de Defesa do Consumidor.
A proposta das operadoras de invalidar uma norma que confere maior proteção ao consumidor e que foi construída com base na jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça representa uma tentativa clara de maximizar lucros à custa da assistência à saúde do contratante. Pretendem, com isso, blindar-se de qualquer obrigação que extrapole os limites de um rol estático e, por vezes, deveras desatualizado, ignorando a evolução da medicina e as necessidades reais dos pacientes.
É necessário reiterar: a operadora de plano de saúde não é uma simples empresa comercial. Ela desempenha uma função social expressa — e legalmente prevista — que se reflete no dever de garantir acesso efetivo, contínuo e responsável à saúde suplementar.
Os lucros auferidos pelo setor nos últimos anos contrastam de forma gritante com a postura de resistência à implementação de normas que ampliem e qualifiquem a assistência. Ao contestarem a Lei nº 14.454/2022, buscam apenas resguardar margens de lucro ainda maiores, transferindo os custos da imprevisibilidade médica ao paciente, justamente aquele que deveria ser protegido.
Sustentabilidade econômica não pode justificar retrocesso sanitário
Não prospera a alegação de que a Lei nº 14.454/2022 compromete a viabilidade econômica das operadoras. Os dados financeiros mais recentes demonstram que o setor manteve lucros crescentes nos últimos anos, mesmo durante a pandemia, e que as negativas de cobertura continuam sendo motivo recorrente de judicialização, sobretudo em tratamentos oncológicos, doenças raras e terapias com medicamentos de alto custo.
A lei questionada justamente diminui a insegurança jurídica, ao estabelecer parâmetros claros para cobertura de procedimentos fora do rol, o que protege o paciente sem eliminar os critérios técnicos de racionalidade e ciência.
Ainda, não se pode olvidar que o artigo 35-F da Lei nº 9.656/1998 determina que os planos de saúde devem garantir aos beneficiários ações voltadas não apenas ao tratamento de doenças, mas também à sua prevenção, reabilitação e manutenção da saúde. Trata-se de um comando legal que reforça o caráter assistencial amplo da relação contratual, alinhado ao princípio da integralidade do cuidado em saúde.
No contexto da Lei nº 14.454/2022, que confere caráter exemplificativo ao rol da ANS, o art. 35-F corrobora a ideia de que o contrato de plano de saúde deve ser interpretado de forma extensiva, com foco na efetividade da assistência e na concretização do direito fundamental à saúde. Negar cobertura com base em omissões do rol, quando presentes recomendações médicas justificadas, representa não apenas afronta à boa-fé contratual, mas também descumprimento de um dever legal expresso.
A soberania médica respaldada pela evidência científica e o §13 do art. 10 da Lei 14.454/2022
A introdução do §13 ao art. 10 da Lei dos Planos de Saúde, pela Lei 14.454/2022, representa um marco normativo que consolida a soberania das decisões médicas respaldadas pela evidência científica.
Ao prever que a cobertura de procedimentos não constantes do rol da ANS deve ser autorizada quando houver prescrição por médico ou odontólogo assistente, desde que haja comprovação de eficácia baseada em evidência científica ou recomendação de órgãos técnicos renomados, o legislador reconheceu que a avaliação clínica individual do profissional de saúde, amparada na ciência, deve prevalecer sobre limitações administrativas.
Esse dispositivo reforça a autonomia médica como elemento essencial na garantia da saúde e reafirma a centralidade da medicina baseada em evidências no processo terapêutico, devolvendo protagonismo ao profissional de saúde diante da burocracia imposta pelas operadoras.
A jurisprudência já reconhecia o rol como mitigável
O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o EREsp 1.886.929/SP, estabeleceu a tese do rol taxativo mitigado, permitindo a cobertura fora do rol em hipóteses excepcionais. O que a Lei 14.454/2022 fez foi transformar essa jurisprudência em norma legal, conferindo maior segurança jurídica e previsibilidade.
Conclusão: a preservação da dignidade exige a preservação da lei
A eventual declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 14.454/2022 representaria um retrocesso jurídico e humanitário. Pacientes com doenças graves, progressivas ou raras, que já enfrentam barreiras naturais à cura e ao diagnóstico precoce, seriam duplamente penalizados ao verem negado o acesso a tratamentos eficazes por razões meramente burocráticas.
A saúde suplementar não pode ser reduzida a uma relação comercial desprovida de humanidade. O contrato de plano de saúde não é um simples título de prestação de serviço: é uma promessa de amparo diante da fragilidade humana. E, como tal, deve ser interpretado à luz da Constituição, da boa-fé e da dignidade da pessoa humana.
Que o Supremo Tribunal Federal, ao proferir sua decisão, se paute não apenas por argumentos econômicos, mas principalmente pelo compromisso ético e jurídico com a vida e a saúde da população brasileira.
* Ludmila Ferraz, advogada especialista em Direito da Saúde e Direito Médico. Secretária-Geral da Comissão de Saúde e Direito Médico da OAB-MT