
A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) abriu consulta pública para a implementação de um sandbox regulatório a fim de viabilizar planos de saúde com menor cobertura. Se aprovada, essa iniciativa permitirá que operadoras testem novos modelos de planos sob um regime regulatório flexibilizado, com o objetivo de ampliar o acesso à saúde suplementar. Apesar de aparentemente nobre, essa proposta levanta preocupações significativas, especialmente no que tange à exclusão de terapias e emergências médicas, além do risco de aumento da judicialização no setor.
O conceito de sandbox regulatório surgiu no setor financeiro e tem sido adotado em diversas áreas para permitir testes regulatórios controlados. No caso dos planos de saúde, a ANS busca flexibilizar exigências normativas para permitir a oferta de produtos de menor custo e cobertura reduzida. No caso, apenas consultas eletivas e exames.
Esse modelo de plano segmentado, contudo, pode resultar na limitação de tratamentos e restrições de cobertura, comprometendo a assistência em momentos críticos. Especialmente quando se fala em exclusão de terapias essenciais, como tratamentos oncológicos, terapias imunobiológicas e cirurgias complexas. Pacientes com doenças crônicas e raras podem ser prejudicados também pela falta de cobertura, gerando um retrocesso no acesso à assistência integral.
Além disso, a incorporação tecnológica na saúde suplementar tende a ser limitada, uma vez que os planos poderiam restringir tratamentos mais inovadores e de alto custo, deixando pacientes sem alternativas terapêuticas adequadas.
Outro ponto crítico é a possibilidade de restrição de atendimentos emergenciais. Atualmente, a legislação exige que os planos garantam cobertura para atendimentos de urgência e emergência, mas o novo modelo pode reduzir a amplitude dessa proteção, criando lacunas para pacientes em situações críticas.
A segmentação de planos pode fazer com que consumidores adquiram produtos sem cobertura para eventos emergenciais, levando a custos inesperados e dificuldades no acesso à assistência médica imediata. Com base nisso, a oferta de planos de menor cobertura pode resultar em um aumento exponencial da judicialização. A experiência brasileira demonstra que sempre que há restrição de cobertura, os consumidores recorrem ao Judiciário para garantir tratamentos essenciais, caracterizando um considerável aumento na judicialização, o que certamente não é o que as operadoras buscam.
A Lei 14.454/22 estabeleceu que o rol de procedimentos da ANS não é taxativo, garantindo que tratamentos essenciais não previstos inicialmente no rol possam ser cobertos judicialmente, desde que cumpram critérios estabelecidos pela norma. Essa medida teve como objetivo ampliar a proteção dos beneficiários contra negativas de cobertura arbitrárias, garantindo maior acesso a terapias e tratamentos fundamentais.
No entanto, a proposta do sandbox regulatório para planos segmentados, oferecendo apenas consultas eletivas e exames, entra em conflito direto com o princípio do rol não taxativo. Isso ocorre porque os consumidores desses novos planos poderiam se ver desprotegidos caso necessitassem de tratamentos mais complexos e/ou urgentes, que passariam a depender exclusivamente da judicialização para serem concedidos.
Assim, a coexistência de um rol não taxativo e de planos de saúde extremamente segmentados cria uma contradição regulatória que pode ampliar as disputas entre consumidores, operadoras e o próprio poder público.
Por fim, o sandbox regulatório da ANS pode ser uma ferramenta interessante para inovação e ampliação do acesso à saúde suplementar, mas sua implementação deve ser acompanhada de fortes salvaguardas para evitar exclusão de tratamentos essenciais e aumento da litigiosidade.
A flexibilização da regulação não pode resultar na precarização do atendimento, devendo ser pautada por princípios de segurança assistencial, previsibilidade para os consumidores e equilíbrio regulatório. Além disso, é fundamental que qualquer proposta esteja alinhada com a legislação vigente, evitando contradições com normas como a Lei 14.454/22 e garantindo que a ampliação da oferta de planos de saúde ocorra sem comprometer o direito fundamental à saúde.
* Amanda Sodré Piona é advogada, especializada em Direito da Saúde e Conselheira Estadual da OAB-MT.